O preço da passagem subiu para R$3,40. Extrapolou o absurdo. Moro perto da faculdade e, quando dá, vou à pé. Hoje não dava: combinei de encontrar às 19h30 com uma amiga, para devolver uma saia emprestada há meses. Ela tinha pressa e eu já não tinha mais ânimo para estudar, então calcei o chinelo e, com algum sono, saí rumo ao ponto de ônibus. Trazia no bolso do short duas notas de R$5. Pensei: ótimo! O dinheiro dá certinho para ir e voltar de ônibus e ainda comprar um café. Mas hoje não dava.
Cheguei no ponto e o 239 estava quase saindo. Servia para mim. Teria dado tempo de correr e alcançar, mas eu estava com sono. Não tardaria para passar outro que me servisse. Encostei no poste, entediada, e uma mulher me perguntou e eu ia pegar o 711. Pensei em questionar o porquê da pergunta, mas lhe disse que me servia, sim. Ela então perguntou se eu poderia inteirar sua passagem, exibindo-me umas parcas moedinhas pousadas sobre a mão suja. Respondi que sim.
As unhas eram curtas. Era mulher. Uma barba rala no rosto, e era mulher. O cabelo comprido e crespo preso num rabo-de-cavalo igual ao meu. Era igual ao meu, era igual a mim, era mulher! Outrora ouvira: "mas e Deus? mas e o inferno? mas e teu papel no mundo? mas você acha isso bonito? mas que sem vergonhice!". Era elA. Era eu.
Perguntou quanto custava mesmo a passagem. Disse-lhe o preço. Ela se espantou. Perguntou-me se eu me lembrava das manifestações contra o aumento das passagens em 2013. Conversamos, indignadas. Passou 638, passou 433, e mais um tanto de ônibus que servia para mim, que tinha marcado hora com a amiga e queria café. Mas não titubeei quando ela me pediu o dinheiro que faltava, e sem me arrepender, sabia que abrira mão do café. Sorvi sua pele. Tomei sua dor. Era quente e sem açúcar. O sono passou.
Subimos no ônibus, paguei duas passagens. Passamos pela horrenda roleta. Ela me agradeceu. Assenti num sorriso. Sentei-me num lugar e ela noutro, mais atrás. Afastamo-nos para sempre, e para sempre estaríamos unidas pelo fardo de sermos mulheres com a ousadia de se exercer num mundo hipócrita e bitolado.
Sentou-se à minha frente uma mãe com criança de colo. Não saberia dizer se era menina ou menino, a criança. Fiz festinha e aquele comecinho de gente me sorriu um sorriso careca. O sol se punha, lindo, na janela do ônibus. Senti felicidade. Mas já quase chegando meu ponto senti culpa por comprar por R$3,40 o direito de não andar por vinte minutos de casa até a faculdade. Saltei desejando que aquela mulher não estivesse me olhando, e que não pensasse mal de mim por gastar quase quatro contos por preguiça.
Cheguei ao local do encontro antes do horário combinado. Sentei-me num banco e passei mecanicamente o troco do bolso à carteira. Faltavam agora vinte centavos para que eu pudesse voltar de ônibus para casa (o que é aconselhável, porque o horário, porque o short, porque as pernas de fora, etc). Me ocorreu pedir vinte centavos emprestados de alguém, mas de pronto mudei de ideia. Estava decidido: voltaria a pé. E, definitivamente, não seria só por conta de vinte centavos.
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