para Manoel de Barros
Pedra era um belíssimo mineral: preto e sólido primogênito da respeitada família Rocha. Pedra morava com sua família num majestoso arquipélago brasileiro. Tinha tudo do bom e do melhor, mas não achava sua vida nada fácil. Era um jovem um tanto quanto nostálgico, apesar de muito rígido em suas opiniões. Morando tão perto do mar, é claro, não podia deixar de ter certa poesia.
Percebia-se aprisionado por sua própria natureza, e lamentava-se diariamente por isso. Minerius Rocha, seu pai, ouvia as lamúrias de Pedra, e acreditava tratarem-se de simples angústias adolescentes, mas Pedra sabia que seu sentimento era de uma inconformidade que ia muito além do exagero hormonal de sua faixa etária. Tinha sonhos, e nunca deixaria de ter.
“As pedras não sonham, meu filho. As pedras só pedram”, dizia Minerius, plantando ervas daninhas no peito de seu filho, que queria mais. Pedra queria saber nadar. Em alguns dias mais ambiciosos, ousava até sonhar com voos. Mas só desejava saber voar pra mergulhar, do céu, no mar. Tinha pelo mar um amor que se tem por deus.
Bolha, uma onda tranquila do mar que banhava o arquipélago onde morava Pedra, o olhava de longe desde que eram crianças. Havia nele qualquer coisa que brilha, apesar de estar sempre sisudo. Certo dia, Bolha resolveu aproximar-se de Pedra e tentar a sorte, puxar assunto. Conversaram pouco. Bolha era falante, agitada, mas Pedra só lhe dava timidez.
Após dias e dias sendo visitado por Bolha, Pedra confessou invejar sua liberdade de ir e vir. “Não é liberdade”, disse bolha: “é uma condição. Não é como se eu tivesse escolha. Às vezes eu quero ficar quieta no meu canto, e não posso. Tenho que seguir com o ciclo. Já tentei conversar isso lá em casa, mas papai é irredutível”.
Bolha tentou convencer Pedra de que valia mais a pena viver os dias com alegria, e que o primeiro passo para conseguir isso era “aceitar a imutabilidade do que não pode ser mudado, oras!”. Mas Pedra era cabeça dura, e não queria dar o braço a torcer. Sentia inveja de Bolha e sua (supostamente) infinita liberdade. Queria, como Bolha, poder deixar-se levar pelo Vento, deixar-se influenciar pela Lua, e ser qualquer coisa que não se enquadrasse na dolorosa necessidade de estabilidade e coerência exigidas pela família Rocha.
“Nem chorar eu posso!”, disse Pedra, num soluço seco. Tamanha foi a emoção que invadiu Bolha, que a pequena onda evaporou antes do tempo, e virou chuva, chorando a si mesma sobre Pedra. O ciclo da água ficou de ponta cabeça: vegetações secaram, ecossistemas se desequilibraram. O Vento ouviu reclamações e rumores por onde passou, e foi até o arquipélago da família Rocha a fim de tirar aquela história a limpo.
Ao conhecer Pedra e Bolha, constatou que os rumores eram verdadeiros e ficou furioso. E Vento furioso assume forma de Ventania, conforme é sabido. “É liberdade o que você quer? É liberdade que você vai ter!”, disse o Vento, já mulher. Deu-se uma tempestade assustadora, e Pedra desprendeu-se de sua família. Bolha imediatamente envolveu-o em si, como um manto. Pedra sabia que sentiria saudades de seus entes, mas estava disposto a pagar o preço para sair daquela pasmaceira que era sua vida.
Pedra e Bolha se divertiram por anos a fio, mas o tempo passa para todo mundo, e Pedra começou a se desgastar. Ocupava cada vez menos espaço, e tinha cada vez menos controle do espaço que ocupava. Bolha, por sua vez, com o tempo, de azul, foi ficando branca e cheia de bolhas, fazendo, finalmente, jus ao nome.
Quando Pedra se desgastou até o final, Bolha se transformou em espuma do mar e, de tanta saudade, deixou-se levar pelas ondas mais fortes por toda a eternidade. Pelo menos, foi assim que o Vento, veterano de guerra, me contou: “É, minha criança... Espero que eu tenha agido de forma correta”, me disse, antes de virar brisa e bagunçar meu cabelo.
Acho que depois de velho e de muito errar querendo acertar, o Vento se deixou ser criança e acertar sem querer nada. Ainda pude ouvir que “ambição é o que mata a gente, mas também é o que faz viver” num uivo pequenininho, de um Vento que agora, não desprende nem folha do chão.
Vou contar pros meus filhos :D
ResponderExcluirLindo.
Acho que sou uma pedra que não acho a minha vida fácil e tenho medo de virar bolha mesmo podendo.
ResponderExcluirQue história maravilhosa, lição de vida!
Beijos
Que bonito isso. É uma metáfora do ser humano. temos essência e invejamos a liberdade do outro. Sendo que limitações são criadas apenas pela nossa mente.
ResponderExcluirAdorei os nomes e sobrenomes. Abraços.