domingo, 27 de outubro de 2013

Instruções para Cortázar um mal

Preâmbulo às instruções para Cortázar um mal

Tenha um problema. Deixe-se levar por ele até que se esqueça qual o verdadeiro motivo de sua preocupação. Fique triste, imensamente triste. Desesperado. Perca a fé na humanidade. Perca a fé em si. Desacredite do deus que você acredita. Tenha canais lacrimais. Permita que seus canais lacrimais derramem pela sua face um verdadeiro oceano de tristeza salgada. Pense que não há saída, e procure uma.

Instruções para Cortázar um mal

Tenha um rosto embebido em gotas de água com sal e duas mãos. Na verdade, não são necessárias as duas mãos comuns à maioria das pessoas. Se não tiver mãos, use as mãos de outrem. Convém tratar-se de um amigo - convém ter um amigo, principalmente para Cortázar um mal, mesmo que você tenha duas mãos.
Se tiver as duas mãos, tanto melhor: deslize as mãos - ou a mão, caso só tenha uma; ou as mãos de outrem, caso não tenha mãos - sobre pele da sua face embebida em gotas de água com sal no intuito de afastar as gotas dali. Caso elas molhem suas mãos - ou sua mão, ou as mãos de outrem - e isso te incomode, enxugue suas mãos - ou sua mão, ou as mãos de outrem - na roupa que estiver vestindo ou em qualquer pedaço de pano que houver por perto, caso esteja nu. Tenha uma boca. Tenha consciência de que tem uma boca. Abra a boca para descobrir se você está vivo. Caso esteja, faça movimentos aleatórios com a boca. Jogue a língua para fora dos limites dos lábios como se quisesse ser desaforado com o mundo. Saiba o que é uma carranca e inspire-se nela. Depois de espantar os maus espíritos, perceba que é possível movimentar o canto esquerdo da boca para a extrema esquerda do rosto. Movimente. Faça o mesmo com o lado direito. Perceba também que é possível movimentar os dois cantos da boca ao mesmo tempo. Perceba por fim que é possível essa movimentação dos cantos da boca com um largo espaçamento entre um lábio e outro, até que se possa ver todos os dentes - ou toda a gengiva, caso você não tenha dentes. Realize essa movimentação. Finalmente, você acabou de dar um sorriso. O sorriso é o avesso do mal. Você acabou de Cortázar um mal com sucesso. Parabéns e boa vida. 




Por que eu estava triste, mesmo?
Lu


ps. Não entendeu nada? Dá uma lidinha nesse texto (ou em qualquer outro) de um cara chamado Júlio Cortázar:

"Preâmbulo às Instruções para dar corda no relógio 
Pense nisto: quando dão a você de presente um relógio estão dando um pequeno inferno enfeitado, uma corrente de rosas, um calabouço de ar. Não dão somente o relógio, muitas felicidades e esperamos que dure porque é de boa marca, suíço com âncora de rubis; não dão de presente somente esse miúdo quebra pedras que você atará ao pulso e levará a passear. Dão a você - eles não sabem, o terrível é que eles não sabem - dão a você um novo pedaço frágil e precário de você mesmo, algo que lhe pertence mas não é seu corpo, que deve ser atado a seu corpo com sua correia como um bracinho desesperado pendurado a seu pulso. Dão a necessidade de dar corda todos os dias, a obrigação de dar-lhe corda para que continue sendo um relógio; dão a obsessão de olhar a hora certa nas vitrinas das joalherias, na notícia do rádio, no serviço telefônico. Dão o medo de perde-lo, de que seja roubado, de que possa cair no chão e se quebrar. Dão sua marca e a certeza de que é uma marca melhor do que as outras, dão o costume de comparar seu relógio aos outros relógios. Não dão um relógio, o presente é você, é a você que oferecem para o aniversário do relógio.
Instruções para dar corda ao Relógio
"Lá bem no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, com dois dedos na roda da corda, suavemente faça-a rodar. Um outro tempo começa, perdem as árvores as folhas, os barcos voam, como um leque enche-se o tempo de si mesmo, dele brotam o ar, a brisa da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão.
Quer mais alguma coisa? Aperte-o ao pulso, deixe-o correr em liberdade, imite-o sôfrego. O medo enferruja as rodas, tudo o que se poderia alcançar e foi esquecido vai corroer as velas do relógio, gangrenando o frio sangue dos seus pequenos rubis. E lá bem no fundo está a morte, se não corrermos e chegarmos antes para compreender que já não interessa nada."




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