domingo, 30 de março de 2014

Veterano de guerra

Clube de Leitura e Escrita Criativas
uma postagem sobre o tema "Insólito"

Fala-se em demasia sobre o cheiro dos livros novos. Ah, o cheiro do novo! Ah, o cheiro do prazer de adicionar algo novo a uma estante de velharias! Renova-se – diz-se – toda a vida!

Pois sim!

Duvido da graça do cheiro dos livros novos. Aqueles livros com cheiro de plástico, cheiro de quilometragem zerada, cheiro de páginas sem orelhas, sem rabiscos, impressões, anotações e lagriminhas derramadas à meia luz de uma noite insone. Um papel que seria inteiramente branco não fosse a presença daquelas letrinhas feitas de tinta prensada contra o papel.

Mais vale o cheiro dos livros velhos! Aqueles livros de edições tão antigas que os avós de nossos avós devem ter visto nas vitrines. Aqueles de páginas já amareladas, nas quais estão impregnadas histórias das mais variadas... Muito mais histórias do que um único livro seria capaz de abarcar sendo só um livro intocado (porque o que faz de um livro um livro é a leitura – não o formato).

Aqueles livros que foram entregues ao sebo como crianças entregues a um orfanato. Livros abandonados, solitários na fila de espera por um leitor novo com cheiro de alguns quilômetros de história já rodados, mas com disposição o suficiente para rodar muitos outros, no plano do fictício e do real.

Aqueles livros que custam cinco reais nas deliciosas feiras itinerantes. Livros temporariamente órfãos porque uma mãe solteira precisava de grana pra botar comida na mesa e vendeu sua coleção – imagine só: há gerações na família! - de clássicos nacionais. Capa dura, vermelha. Título escrito em dourado. Livros desprovidos de dono porque um jovem interiorano quis tentar a vida no Rio de Janeiro e largou seu On The Road nas proximidades da rodoviária pra ser de alguém que precisasse lê-lo. Porque uma moça perdeu seu amor pra morte e nunca mais suportou ler Cyrano de Bergerac.

Ninguém se despede de um livro sem dor, ainda que não se dê conta da dor que abriga.

Ninguém adquire um livro que não seja novo, mesmo que o adquira já velho de guerra.

Ninguém adquire um livro sem se renovar um pouco (ou sem renovar um pouco o próprio livro), mesmo que o livro já exista há mil milênios.

Ninguém deixa de envelhecer - pasme! - ao comprar um livro novo em folha.

Mas um livro que já teve outro(s) dono(s), por trazer em si o triplo de histórias, dá a cada palavra mais mil possibilidades de significado do que o usual.


Livro usado tem cheiro de história vivida - o que, de maneira alguma, impede as histórias ainda por viver.

2 comentários:

Obrigada pelo comentário! Vou ler, e depois publico e respondo, ta?