Há uma lenda bem conhecida, da mitologia grega, sobre a origem da flor narciso: um homem extremamente vaidoso (homônimo da bela flor), certo dia, debruçou-se sobre um rio, e, tanto tempo ficou contemplando sua beleza refletida na água, que criou raiz na margem do rio, transformando-se em flor. O que nem todo mundo sabe, é que, escondida atrás de uma árvore, estava a ninfa Eco, observando Narciso, apaixonada. Eco havia sido amante de Zeus, e Hera, para vingar-se, lançou sobre a ninfa uma maldição: Eco estava condenada a poder dizer, apenas, as últimas palavras que alguém tivesse dito perto dela. Sua voz seria, a partir de então, um mero eco da voz de terceiros. Pois bem: estava Eco admirando Narciso, escondida, e, quando uma imagem chamou a atenção de Narciso, na calmaria do rio, o semideus, sem saber que se tratava do próprio reflexo, começou a declarar-se para a bela imagem que via nas águas. "Quanta beleza!", exclamava Narciso. E Eco, querendo declarar-se, pode apenas repetir: "Quanta beleza!". Narciso, feliz com a reciprocidade, disse, então: "eu te amo!". E Eco, querendo dizê-lo, repetiu as palavras do amado: "eu te amo!". E ambos ficaram lá, até Narciso virar flor.
Hoje me percebi meio Narciso e meio Eco. Passei tanto tempo enraizada em mim, que me esqueci de ampliar meu campo de visão para tanto amor ao meu redor. Passei tanto tempo querendo dizer o que penso, mas minha voz só pode dizer o que era de bom tom... Achei que todos fossemos personagens, e achei que conhecia bem o meu roteiro. Mas me percebi gente. E, como gente, sou muito mais complexa do que um personagem. "Você não é mais a mesma". "Não estou te reconhecendo". "O que aconteceu com você?". Tudo isso e mais tenho dito ao espelho, como Narciso, mas meu reflexo se limita a repetir o que eu disser, como Eco. Minhas afrontas perdem-se no vácuo. Minhas perguntas ficam sem resposta.
Quando eu achava que era personagem, me sentia parte. Quando percebi que sou gente, busquei me despir dos rótulos que me compunham, e achei que assim alcançaria a plenitude. Mas não alcancei. Estou perdida, estou sozinha, e não me conheço. Costumava me conhecer, e quase sempre gostava de quem eu era. Costumava ser leal, passional, confiar. Precisei ser cuidada e deixei que me cuidassem. Mas, e agora, sem rótulos, quem eu sou? Do que eu preciso? Meu coração bate acelerado sem nenhuma paixão que o estimule a tal. Queria dizer, a quem sinto falta, de quem sinto falta. Quer dizer: saudade disfarçada de falta, por orgulho. Mas não digo, porque o receio me detém.
Tudo estaria bem se eu estivesse comigo. Mas não me conheço, e, me desconhecendo, é arriscado confiar em mim. Não saber quem eu sou deveria ser uma aventura instigante, mas não é. Não há intensidade, e eu não estou desesperada. Estou monótona. Entediada. O sol brilha lá fora num céu límpido, e eu não tenho motivos para não estar alegre. Tanto não tenho motivos, que não estou triste. Não estou de forma alguma. Não estou, simplesmente.
Fui Narciso apaixonado por alguém que não existe. Receio tornar-me Eco de vozes com as quais sequer concordo. Receio, mas não me apavoro. Não sou frágil como já fui um dia, nem forte como espero vir a ser. Não sou frio, nem calor. Nem grito, nem silêncio. Não estou. Não sou. Não sei.