O menino digita oito números
aleatórios e espera enquanto o telefone chama. Atende uma voz feminina,
mecanicamente:
- Alô?
- Fala pra ela, moça! Fala que eu
to precisando ficar sozinho, sambar no escuro, cantar pra dentro. E olha que já
faz tempo... Preciso nem lembrar que existe mais gente no mundo, pensar em quem
eu sou, no que eu quero, no quanto eu posso. Fala que eu fiquei magoado desde a
primeira vez que ela reagiu ao meu encantamento com um livro como se fosse uma
grande besteira. Fala que não é besteira! Fala que não adianta nada ser apegado
ao desapego. Fala que eu to tentando entender isso... Explica que algumas
coisas tem valor não por custarem noventa moedas, mas porque foi difícil juntar
noventa moedas havendo tantos outros gastos mais urgentes. Fala que eu vou
defender o que fez parte do meu passado com unhas e dentes porque foi isso que
me fez ser quem eu sou. Fala que eu não vou ficar feliz com vários quase-dez
se tirar cinco e setenta e cinco em uma prova, e deixar duas questões em branco
na outra. Faz ela entender que não vou ficar contente enquanto não for bom em
tudo. Fala que é quase insuportavelmente difícil essa batalha que eu travei
contra o meu ego. Fala, moço! Fala tudo e não a deixe ir embora porque eu não
sei falar sem fazer drama. Fala do seu jeito porque deve ser melhor que o meu. Fala
porque eu não to sabendo mais falar.
Ouviu-se o som taxativo do bocal
do telefone batendo na base. A moça foi. Apaixonou-se pelo amor do menino e foi
correndo, desesperada, sem saber pra onde. Sem saber com quem devia falar. Contou
o que ouvira em poucas palavras, à sua cândida maneira, a todas as pessoas que
encontrou na rua. Assim, tinha certeza, aquelas poucas palavras que resumiam
todas as tantas palavras que um menino desconhecido lhe chorara ao telefone,
chegariam aos ouvidos da misteriosa menina-alvo
.
Mas o menino não sabia desse
ímpeto. Sentiu-se até mais sozinho do que antes. Quando percebeu que não havia mais ninguém lhe ouvindo, chorou, chorou
e chorou. E dormiu três noites seguidas de tanta tristeza.
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Obrigada pelo comentário! Vou ler, e depois publico e respondo, ta?